16/05/2022
Leticia Renck Bimbi
25 de maio de 2022
Comecei a escalar há pouco mais de 1 ano, e logo que terminei meu curso básico entrei pro CEC. Estava ansiosa pelas minhas férias de 2022, pois seriam as primeiras férias após eu começar a escalar, e logo no começo da temporada de montanha. Todo meu planejamento e desejo para esses dias se resumia a: “quero escalar o mês inteiro”. Por sorte, e sem combinarmos, três membros um tanto fissurados em pedra entraram de férias no mesmo mês: eu, Paulinha Caetano e Gustavo Diniz. Eu já havia escalado algumas vezes com a Paulinha e duas vezes com Gustavo (que me levou só em vias clássicas, diga-se de passagem: fizemos Urbanoide e K2). Paula e Gustavo escalam direto juntos, mas nunca tínhamos escalado nós 3. Nossa ideia inicial era subir o Dedo de Deus em bate-volta do Rio, mas virou de última hora uma viagem de 4 dias pra Salinas.
Criamos um grupo no Whatsapp e combinamos de subir em um domingo à noite, com plano de estarmos segunda cedo já na montanha. No final da semana anterior a previsão do tempo não era nada promissora: chuva segunda a tarde, tempestade com raios na terça inteira, e possível janela de tempo bom na quarta e na quinta. Mesmo assim, em momento algum cogitamos desistir, chegando à seguinte conclusão: “vai ser bom de qualquer jeito, no máximo ficamos no abrigo comendo fondue e tomando vinho, e escalamos o que der, quando der”. Pra nossa sorte e espanto, o tempo nos surpreendeu positivamente todos os dias, o que só melhorou a viagem que já tinha garantia de ser boa.
Seguimos o plano e começamos a caminhar cedo na segunda-feira rumo à base do Capacete, onde faríamos uma via relativamente curta (pois sabíamos da previsão de chuva, e o tempo estava realmente nublado e frio), a Sergio Jacob. Na trilha o tempo só ficou ainda mais nublado, o que nos fez inclusive refletir por alguns segundos se realmente conseguiríamos fazer cume. É claro que os três concordaram: “vamos pelo menos tentar”. A via tem 4 enfiadas e é bastante exposta. O primeiro lance é difícil, um pouco esportivo, e as condições climáticas de vento e frio congelando as mãos dificultaram um tanto pra mim e pra Paulinha. Gustavo guiou o lance com tranquilidade, assim como toda a via. Desse início, seguimos uma cristaleira muito bonita, vertical com bastante agarras (que escalei de luvas, de tão congeladas que estavam minhas mãos), que termina saindo para lances de aderência mais complicados e expostos. Fizemos cume por volta das 10h da manhã, e após poucos minutos sentados no meio da nuvem, já sentimos os pingos de chuva. Rapelamos rapidamente, com chuva apertando na base, e chuva intensa ao terminarmos a trilha de aproximação, no abrigo do Mascarin. Nesse dia já estávamos de cabeça feita: um cume antes da chuva! A escalada do dia já estava garantida. Fomos para a Pousada dos Paula, onde nos hospedamos, e passamos o resto do dia bebendo vinho, jogando Uno e comendo o ótimo caldo verde que Pedro, o dono da Pousada, deixou para nós.
A terça-feira era o dia de condições climáticas menos promissoras, porém durante a segunda o tempo foi melhorando, e a previsão também. Ficamos animados com a possibilidade de fazermos algum cume, muito mais que o nosso planejado. Gustavo sugeriu subirmos a Caixinha de Fósforos, que envolvia uma caminhada de aproximação possível de ser feita mesmo com tempo ruim e uma via de aproximadamente 20m de artificial (que segundo Gustavo, conhecido no clube por escalar de guarda-chuva, não teríamos problema em fazer mesmo que estivesse molhada). O dia começou com sol entre nuvens, e o tempo foi nublando a medida que fazíamos a trilha. No caminho da Caixinha, encontramos um guarda-parque que nos alertou de que havia uma onça vista recentemente por visitantes nas proximidades do acampamento próximo à trilha que iríamos fazer. Felizmente, não topamos com a onça em nenhum momento.
A trilha segue contornando o Capacete, passando pelas entradas das aproximações das vias Rodolfo Chermont e CERJ, tocando reto e depois iniciando uma subida mais íngreme, um pouco sofrida, até chegar na base da Caixinha. Ao chegarmos, novamente ventava e o tempo estava congelante. Gustavo se equipou e começou a subir o artificial, e sem nenhuma dificuldade chegou rapidamente ao cume. Graças a São Pedro, não choveu, pois a via não é nada trivial para quem não está acostumado com artificial, como eu. A saída já é um negativo, com grampo alto (para conseguir equipá-lo, Gustavo me levantou no braço pra eu conseguir chegar na altura e colocar a primeira costura), o que dificulta bastante. Fiquei um tempinho pendurada no estribo tentando me puxar pra cima e caindo repetidamente. Depois do negativo a coisa melhora um pouco, mas não tanto. Devo ter demorado uma hora pra subir os curtos e sofridos 20m. Paulinha veio atrás, sofrendo um pouco menos que eu, e nos juntamos ao Gustavo no cume, presenteados com um impressionante visual 360º dos Três Picos, Capacete e Vale dos Frades inteiro. Nesse momento, novamente surpresos com o tempo, apreciamos o céu aberto, pois as nuvens tinham ido embora. Gustavo levantou o drone e fizemos fotos incríveis.
Esse cume foi muito especial para nós, pois é pouco frequentado e tem uma vista realmente impressionante, além de ser uma pedra em formato de caixa que parece se equilibrar na sua base delicadamente por um lado só. Mais um dia de cabeça feita! E logo na terça feira, que era o dia com pior previsão. No final da tarde o tempo começou a abrir cada vez mais, e o dia terminou com uma linda noite totalmente estrelada, sem nuvens. Conseguíamos ver o contorno dos Três Picos da pousada, e com esse visual fizemos uma fogueira, bebemos vinho e caldo, e planejamos o grande dia seguinte, pelo qual estávamos cada vez mais empolgados: subir a Face Leste do Pico Maior. Esse momento foi, para o grupo, de muita energia boa e uma sensação de que tudo daria certo no dia seguinte.
Para mim, que escalo há pouco mais de 1 ano, essa ideia vinha carregada de alguns sentimentos: primeiro, uma grande empolgação e vontade de subir, seguida por um grande frio na barriga e medo. A imponência do Pico Maior gera uma sensação de respeito máximo, associada com grande admiração. A montanha é linda, gigante, imensa. Lembro da primeira vez em que fui para Salinas e visualizei a montanha, quando ainda não escalava mas fazia caminhadas. Sabia que as pessoas escalavam lá, mas aquilo parecia totalmente coisa de maluco. E agora eu estava entrando pro time de malucos que tentam subir naquele cume. Seria a primeira vez no cume para eu e Paulinha, enquanto Gustavo já subira algumas vezes. Organizamos as mochilas e o material na noite anterior, acordamos as 4h da madrugada com um frio de rachar, pegamos o carro e seguimos até o ponto de início da caminhada, ainda de noite e congelando de frio. Começamos a andar por volta de 5:30h e chegamos na base por volta de 7h10min. Nesse momento o sol já nos esquentava, o amanhecer estava lindo e não havia uma nuvem no céu e nem vento na base. Fomos presenteados com um dia perfeito de escalada.
Gustavo cumpriu seu plano de tocar “a jato” as primeiras 6 enfiadas, para ganharmos tempo nas partes mais complicadas, a partir da primeira chaminé. Escalou brilhantemente, com rapidez, confiança e segurança na navegação da via – o que não é nada fácil, pois por ser um E3 geralmente não se enxerga o próximo grampo, além de existirem vários pontos em que é possível se perder na via e pegar um caminho errado, às vezes entrando em outra via sem querer. Chegamos na base da chaminé no tempo planejado, e Gustavo seguiu chaminezando sem dificuldades os 20m até o único grampo nessa parte (confirmando minha sensação de que aquilo era realmente coisa de maluco e éramos todos malucos). O crux dessa chaminé é o lance de saída dela, em que é preciso desescalar um lance bastante aéreo, que eu fiz com a corda em “linha de vida”, por medo de cair. Depois, seguimos por uma enfiada muito bonita, mas bastante delicada, com diagonais em que não seria muito legal tomar uma queda, e depois mais chaminé – a segunda mais difícil e longa – enfiadas em artificial, e finalmente chegando ao cume às 14h, conforme planejado, após uma enfiada mais fácil subindo por um costão. E chegamos! Sensação indescritível de estar em um cume tão grande, imponente, em que só é possível chegar-se escalando. Cansados, após 16 enfiadas, mas com a sensação maravilhosa de ter conseguido chegar até ali.
O céu continuava totalmente limpo, com vista espetacular, porém agora com muito, muito vento. Ficamos sentados quase o tempo todo, pois em pé o frio e o vento castigavam, mesmo vestindo todas as camadas de roupa que trouxemos. Comemos nosso sanduíche e partimos para a segunda parte do dia, nada trivial: achar a parada dupla de rapel da Sylvio Mendes, por onde desceríamos. Eu e Paulinha estávamos um tanto nervosas com essa parte. Todos que escalam em Salinas já devem ter ouvido alguma história de bivaque forçado no cume por escaladores que não conseguiram achar a descida, ou que prenderam a corda em algum obstáculo no rapel, e só de pensar na possibilidade de passar uma noite naquele frio e vento já ficávamos um pouco tensas. Novamente, Gustavo comandou essa parte com tranquilidade e achamos rapidamente a dupla do rapel. Daí para frente foram vários rapéis por dentro da chaminé da Sylvio Mendes, o que foi bom, pois a chaminé abriga um pouco do vento. Terminamos os rapéis a tempo do por do sol, conseguindo encontrar a trilha de volta, que contorna o capacete pelo outro lado, ainda com luz do dia. Daí pra frente já sabíamos o caminho e fomos com tranquilidade até o abrigo.
Foi essencial estar com alguém como o Gustavo pra fazer essa via: como guia, ele nos transmitiu segurança o tempo inteiro, desmistificou a via nos explicando como seria cada enfiada, coordenou toda a logística do que levaríamos de equipamento e material de primeiros socorros. Guiou a via toda com muita confiança e tranquilidade, manejou muito bem o tempo, motivou o grupo e manteve sempre a energia lá em cima, mesmo quando estávamos cansadas. Foi muito importante para mim, que ainda sou iniciante nesse tipo de escalada, saber que tínhamos capacidade enquanto grupo de lidar com possíveis situações adversas, caso acontecessem, e de que estava acompanhada por pessoas que sabiam muito bem o que estavam fazendo. Nossa dinâmica fluiu muito bem, e esse dia para nós foi um grande exemplo do que é montanhismo: a parceria.
Chegando ao abrigo, poderíamos pensar em um próximo dia de descanso, mas obviamente nem cogitamos: o plano, mesmo após escalar 700m, era acordar novamente 4h da manhã, pegar o carro ainda à noite e ir em direção à Serra dos Órgãos para chegar ao cume de outra impressionante e linda montanha, o Dedo de Deus. Assim cumpriríamos nossa ideia inicial, pensada antes da viagem.
Outra montanha que para mim vinha carregada de muita emoção e que tinha desejo de subir desde que comecei a escalar. Ver o plano se tornando realidade era motivo de muita empolgação. Novamente a parceria do Gustavo e da Paula, que já haviam subido a montanha (a Paula 2x, o Gustavo já perdeu a conta) foi essencial. Chegamos na base da trilha às 6h20min, e para nossa própria surpresa, fizemos cume em 4h! Surpresos, pois o corpo já não estava descansado, e vínhamos de dias intensos de trilhas e escaladas. Mas o gás e a motivação do grupo permaneceram os mesmos. Gustavo escala o dedo como se estivesse fazendo uma via qualquer de 3o grau com aproximação de 5 minutos no Rio, e tocou tudo muito rápido, o que foi essencial para nossa agilidade em chegar ao cume. Para mim, a parte mais desgastante dessa vez foram as chaminés, pois não estou acostumada a fazer tantas, e já estava cansada das que fizemos no dia anterior. Mas juntei todo e qualquer resto de energia física que ainda tinha e toquei pra cima me entalando de qualquer jeito que eu pudesse.
E assim, depois do lindo lance da Maria Cebola, de algumas chaminés e da passada do Gigante, no final da via, chegamos à escadinha do cume. Seguindo a tradição do Gustavo de levar estreantes ao Dedo, subi primeiro, ficando totalmente sozinha no cume dessa histórica montanha. Nesse momento a emoção gerou riso e choro ao mesmo tempo, e uma sensação inacreditável de ter completado todos esses cumes em 4 dias. Como não sou de chorar muito, quando Gustavo e Paulinha subiram eu já estava só com o sorrisão na cara. Nos abraçamos, tiramos foto, comemos sanduíches e assinamos o livro de cume. Nos preparamos então para a descida, essa bem mais simples que a do Pico Maior, mais ainda um pouco preocupados em descermos rápido pois havia previsão de ventos de até 50-70km/h no Rio de Janeiro naquele dia. Fizemos os rapéis pela Teixeira e descemos rapidamente a trilha e os cabos de aço, chegando à base dos cabos por volta de 12h30min e à estrada antes das 13h30min. Da estrada andamos até o Paraíso da Serra, onde comemos pastel com coca cola e daí descemos ao Rio, pegando chuva na estrada e confirmando a teoria do CEC de que chove no Rio toda vez que o Gustavo vai pra serra.